
Final de julho de 1993. Estava admirado com o hotel de alto luxo que o Jornal da Tarde me colocou, em San Cristóbal, na Venezuela. Por engano dos burocratas do jornal, com certeza. Tomava café e pensava nas pautas do jogo da Seleção de Parreira das tumultuadas Eliminatórias para a Copa dos Estados Unidos. Gritos femininos me chamaram a atenção. Aliás, de toda a legião de jornalistas esportivos que estava no hotel. Os gritos eram em português. Fomos todos para a piscina, de onde saíam. Era uma mulher revoltada, dizendo ter tido suas joias roubadas no quarto do hotel. Os funcionários mal começaram a responder. Quando uma voz firme anunciou. "Eu quero tudo isso resolvido. Quero as jóias da minha mulher de volta. E ponto final. Não tem mais conversa." Era Galvão Bueno de sunga vermelha, sem camisa, pulseira, anéis e gargantilha. Sua postura imponente e, principalmente, sua voz fez tremer camareiras e garçons. Tudo ficaria pior quando ouvi o gerente, avisando a todos. "Ele é o mister Galvão da TV Globo. Vamos resolver." Até hoje não sei se as joias foram encontradas, se o hotel pagou por outras. Tudo acabou resolvido. Para mim, ficou nítido o quanto o principal narrador esportivo brasileiro é conhecido fora deste país. E tem suas entranhas ligadas à Globo. Essa lembrança retorna agora depois que Galvão Bueno confirma que lançará este ano sua biografia. Mais do que autorizada. Sem muito dos bastidores que testemunhou. Ele lembrará seus 40 anos de carreira ao jornalista Ingo Ostrovsky. Os dois são amigos de décadas. Ingo atualmente dirige o Bem, Amigos, programa do narrador no Sportv. Por anos, Ingo representou a Nike junto à Seleção Brasileira.

Nunca existiu e nem existirá alguém como Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno. Ninguém jamais teve tanto espaço para não só narrar, como opinar e impor o que pensa nas transmissões esportivas do país. Ele representa o monopólio da Globo no futebol brasileiro. Nos meus 29 anos de carreira no jornalismo, nas últimas seis Copas do Mundo, nas Eliminatórias, nas Copas América, amistosos encontrei Galvão inúmeras vezes. E sem exceção vi um profissional de extrema qualidade, muito bem preparado, que vai muito além da designação narrador. Mas que sabe muito bem o poder que tem. E o exerce sem cerimônias. Faz questão de estar nas coletivas mais importantes da Seleção Brasileira. E depois delas, faz questão de conversas individuais com o técnico. Na frente dos mesmos jornalistas que imploravam pelo direito de fazer uma pergunta. Galvão não pede entrevistas. As impõe. Os treinadores e jogadores cedem. É como se Galvão tivesse tatuado o logotipo da Globo na testa. A emissora que controla o futebol deste país há 40 anos. Paga por esse privilégio. Daí as notícias exclusivas do narrador. Não é bom negócio virar as costas a emissora com o monopólio do futebol no país. Dunga sentiu isso na Copa de 2010. Voltou e está muito mais acessível. Nas conversas, Galvão não se limita a perguntar. Ele diz o que pensa sobre tática, sobre jogadores, sobre convocações, desconvocações, escalações. Todos aceitam. Ou pelo menos, fingem concordar. Por trás de sua personalidade forte, que o torna arrogante, há conhecimento tático. Se tornou narrador por acaso. Ele entrou no jornalismo esportivo como comentarista. Passou por uma enorme peneira, na então poderosa Rádio Gazeta, em São Paulo. Era 1974. Eu e o meu grande chefe no Jornal da Tarde, Castilho de Andrade, fizemos uma longa entrevista com Galvão no início dos anos 2000. Tenho de confessar que ele foi um das pessoas mais difíceis de aceitar falar com o jornal. Mesmo sendo próximo de Castilho, dos maiores especialistas em Fórmula 1 no país. Depois de muita insistência, marcou no lobby do hotel Fasano, onde estava hospedado. A entrevista foi marcante. Conheci o jornalista que está por trás do personagem. Ele já assumia ser muito além de um mero narrador, mas um "vendedor de emoção". O que repetiria à Veja mais de dez anos depois. Não foi por acaso que, na sua peneira na rádio Gazeta, quando foi perguntado qual esporte conhecia além do futebol, respondeu, encarando a bancada: "todos". Conhece mesmo.

Galvão percebeu o despreparo da mídia de uma maneira geral neste país. E tratou de mergulhar nas regras, detalhes, bastidores do futebol, Fórmula 1, vôlei, basquete, atletismo. Deu um exemplo de modernidade percebendo a crescente relevância do MMA. Fez questão de se transformar também no principal narrador do UFC no Brasil. Sem ingenuidade, Galvão Bueno tem a mesma função do locutor que fica em frente a uma das lojas da 25 de março. Ele precisa vender o produto. Mesmo não acreditando que ele seja o melhor, só precisa convencer o público. Muitas vezes talvez ele nem acredite no que está falando. Busca as explicações mais esdrúxulas, ridículas para justificar o interesse que o telespectador deve manter em relação a um jogo. "Vendedor de emoções" é assim mesmo. Sua importância no cenário nacional, e internacional, é indiscutível. Vaidoso, ele faz questão de mostrar sua intimidade com as personalidades como as que colocará no seu livro: Pelé, Ayrton Senna, Nelson Piquet, Ronaldo, Zico, Gustavo Kuerten, Hortência, Neymar.

Galvão sabe que significa a aprovação da opinião pública. Os ídolos também. Ter o seu aval é a garantia de patrocinadores fortes. Levar o narrador à empolgação em um gol, em uma cortada, em uma cesta pode representar uma transferência a um clube europeu. Porque além da vibração, há sua infalíveis opiniões. O grande problema do narrador está na superexposição. Forçada muitas vezes pela própria Globo. A emissora carioca sabe que sua presença valoriza o evento, traz mais audiência. E ele não se faz de rogado. Embora, milionário, more parte do ano no principado de Mônaco, aceita transmitir o que for determinado. Embora vários executivos já tenham tentado nestas últimas décadas, ninguém cala Galvão. Ele narra, opina, critica arbitragem. Discorda de comentaristas, de árbitros que o acompanham nas transmissões. Sua palavra é a última. Isso passa ao ar. Fica extremamente antipático. Sabe e não se importa. A estrela é ele, ponto final. Não aceita nem ficar mais baixo do que seus comentaristas. Invariavelmente, quando a tomada é de corpo inteiro, ele pisa em uma plataforma para ficar da mesma altura de Casagrande, Arnaldo. Isso é lei na Globo. Já teve problemas graves com Reginaldo Leme, Pelé, Renato Mauricio Prado. Casagrande é o único rebelde que tem coragem de enfrentá-lo nas transmissões. Mas acaba perdendo os embates. Porque, literalmente, ninguém cala Galvão. Caio e Júnior sabem disso e nem perdem tempo. Arnaldo César Coelho, apesar de amigo, tem que se controlar porque o narrador acredita que entende mais de arbitragem do que o primeiro juiz não europeu a apitar uma final de Copa do Mundo. Também não aceita ser contrariado por Arnaldo.

Mas é na ansiedade de mostrar erudição, conhecimento, que acaba se sabotando. Sem alguém como coragem para travar sua língua e com muito tempo com o microfone, exagera. Um livro chegou a ser lançado em 2010 com o singelo título de "Cala a Boca, Galvão". São frases gafes e frases absurdas, sem sentido, ditas pelo narrador. Só foram levadas a sério porque se trata do maior narrador do país. Seu patriotismo se mistura com a vontade de vender emoções. E tenta fazer times medíocres como o de 1990 e 2010, 2014 máquinas imbatíveis no imaginário popular. Galvão é responsável pela ilusão e desilusão atual no futebol brasileiro. Como é que a equipe sensacional que ganhou a Copa das Confederações passa vergonha na Copa realizada dentro do país? Perde de 7 a 1 para a Alemanha? O brasileiro comum se sente traído pelo narrador em quem confiou. Por isso ele tem de rever as expectativas que desperta. Flamenguista assumido, ele precisa sempre trabalhar cercado de seguranças, quando vai para os estádios. Invariavelmente é xingado, quando reconhecido. O coro de: "Galvão vá tomar no ..." é obrigatório. Em ginásios, estádios. Torcedores o enxergam como a voz não só da Globo, como da CBF. Também não entende que sua proximidade com João Havelange, Ricardo Teixeira, José Maria Marin sempre foi um tiro no pé. Mas está claro que a vaidade interfere. Gosta de mostrar a reverência que os poderosos da CBF reservam a ele. Mesmo sabendo que é à Globo, dona do futebol. Em junho, ele completará 65 anos. Já narrou onze Copas do Mundo. Como Silvio Caldas já prometeu se aposentar várias vezes. Mas sempre muda de ideia. Seu contrato vai até 2019 com a Globo. Lá terá 69 anos. Não há a menor certeza se irá parar. Age como se fosse eterno. Nunca permitiu que a emissora efetivamente preparasse um substituto. Faz questão de estar nos principais eventos. Luís Roberto, Cléber Machado ficam com as partidas, as lutas, as corridas que não interessam. Executivos globais lhe dão apoio porque sabem que ele representa audiência. O brasileiro ama odiar Galvão Bueno há 41 anos, quando narrou a Copa de 1974, na Alemanha. Tem muitas histórias para contar. Aprendeu com a Globo que a autocensura é um dom. E vai colocar no livro as mais amenas, menos perigosas, para alívio dos poderosos. Inteligência e bom senso nunca faltaram ao ex-vendedor de enciclopédias. Galvão se desenvolveu na arte de negociar emoção. A tal ponto que se tornou especialista em transmitir ilusão. A dura e suja realidade do esporte, principalmente do futebol, nunca interessou à Globo. Muito menos ao dono de sua voz. É o que se pode esperar de sua biografia. Livro que deveria ser lançado no ano passado. Mas o fracasso da Copa do Mundo não seria um bom incentivo aos leitores. Motivos para questionar Galvão sobram. Mas ninguém pode negar. Ele é o melhor narrador deste país. O que mais tem responsabilidade nas costas. É a voz da dona do monopólio do futebol no Brasil. E continuará assim enquanto tiver fôlego para vender emoções. Muitas vezes desilusões...
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Fonte: Esportes R7
Categoria: formula-1
Autor: cosmermoli
Publicado em: 01 Mar 2015 13:30:22
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