quarta-feira, 2 de novembro de 2016

"Não quis ir para a Globo para não perder a alma." "O futebol brasileiro está igual à política. Não tem líderes, ídolos de verdade. Neymar não é." "Éramos ingênuos. Não sabíamos que estávamos sendo usados pela ditadura militar." "Obriguei o Galvão Bueno a tirar a gravata. Acabei com o padrão Boni." Exclusiva com Silvio Luiz...

"Não quis ir para a Globo para não perder a alma." "O futebol brasileiro está igual à política. Não tem líderes, ídolos de verdade. Neymar não é." "Éramos ingênuos. Não sabíamos que estávamos sendo usados pela ditadura militar." "Obriguei o Galvão Bueno a tirar a gravata. Acabei com o padrão Boni." Exclusiva com Silvio Luiz...




Legado. Palavra vulgarizada, mas de grande significado. Os ensinamentos de uma vida, de uma carreira. A honra de ter mudado conceitos, padrões, apresentado o novo. É o que faz Sylvio Luiz Perez Machado de Souza. Com a experiência de quem trabalhou na TV Paulista, na Rádio Bandeirantes, TV Excelsior, TV Record por duas vezes, SBT, na Bandeirantes, por duas vezes, na Bandsports e atualmente está na RedeTV! e na rádio Transamérica. Aos 82 anos, Silvio Luiz tem muito orgulho da vida, da família, da carreira. Mais lúcido do que nunca, tem um olhar firme, crítico sobre o Brasil, o futebol, sobre o jornalismo. E sobre a narração esportiva. Não lamenta, encara de frente a realidade. Ele é denso, quando deseja, fala muito sério. Suas palavras são ensinamentos. De quem viveu e vive o futebol. O depoimento foi exclusivo ao blog. "O Carlos Alberto Torres foi capitão da Seleção na Copa de 70. Tinha 26 anos. Pelé, Gerson, Tostão, Jairzinho tinham de se dobrar diante do seu poder de liderança. Era exemplo para os companheiros. Merecia respeito, credibilidade. Sua morte foi uma enorme perda, que o Brasil só reconheceu agora que perdeu. "Hoje, os homens da CBF têm a coragem de dar a faixa de capitão para o Neymar. Ele não tem um pingo de liderança. Não consegue nem entender a importância de ser capitão do Brasil. Os jogadores da Seleção o respeitam porque sabem o quanto ele representa para os patrocinadores, como a Nike. É covardia compará-lo a Carlos Alberto Torres. "Neymar é um excelente jogador. Mas precisa ser orientado. Ele deveria ser o grande ídolo do futebol brasileiro. Não é. Não se posiciona, não tem noção do que representa. Eu lamento porque tem um monte de gente que diz que cuida da sua carreira. Infelizmente no futebol brasileiro, como na política, estamos sem líderes. E isso nos afeta profundamente. Não temos a quem seguir, a quem admirar. "Jogador de futebol não é mais só jogador. A maioria age como celebridade. Os melhores são cercados de vinte, trinta assessores. E se transformam em homens narcisistas, mais mimados do que meninos. Não têm personalidade para se posicionar. Não querem se comprometer com nada. A não ser fazer a melhor tatuagem, biquinho na hora do selfie, fazer campanha nas redes sociais para ganhar mais dinheiro com patrocinadores. "Podem ser bilionários. Mas vão passar pela vida em branco. São egocêntricos e poderiam fazer muito pela sociedade. Bastaria se posicionar nas entrevistas contra o racismo, contra a corrupção, contra a injustiça social no Brasil. Iriam servir de exemplo. Mas não falam nada com nada, de propósito. Para não ter problemas. "Só querem saber da próxima festa, do próximo carro, do próximo jatinho que vão comprar. Acham que fazem um favor enorme em jogar pela Seleção. Por isso que não são ídolos de verdade. A população percebe o vazio que eles têm na alma.

"O relacionamento entre jornalistas e jogadores atualmente é o pior possível. Está claro que os jogadores não querem ser incomodados ter de se posicionar. Os repórteres não têm saída e aceitam as superficiais coletivas. Ou então precisam vender sua alma para conseguir exclusivas onde não podem perguntar de verdade. Tudo é falso. Superficial. De propósito. "Quando eu era repórter de campo, no início da carreira, tudo era diferente. Cansei, de no aquecimento do Santos, servir de bobinho para o Pelé, Edu, Zito, Carlos Alberto. No intervalo, descia para o vestiário e ia chupar laranja dos jogadores. Quando o técnico dava a preleção, eu me afastava tamanho era a nossa relação de respeito. Poderia ouvir, se quisesse. Mas me afastava. Não precisava ser covarde para ter informações. "Essa proximidade fazia bem para os dois lados. Eu sempre tive a liberdade de criticar quando o jogador estava mal, cobrá-lo inclusive na entrevista. Ele entendia. Não é porque eu era jornalista e ele um atleta que deveríamos nos odiar. Hoje, não. Ou está cada um de um lado. Ou só os puxa-sacos conseguem entrevistas. Mas vazias, que não levam a nada. "O que acontece no futebol é o reflexo da sociedade brasileira. Seguindo o exemplo dos nossos governantes. Todos querem levar vantagem em tudo. Ganhar jogos, campeonatos seja da maneira que for. Se as conquistas vierem em lances ilegais, tudo bem. A ética não conta. O desrespeito, a impunidade imperam. Os grandes são favorecidos como na vida são os ricos. Os pequenos são pisados. São tratados com o mesmo desprezo dos pobres doentes largados nos corredores do SUS. Entra governo, sai governo e é a mesma coisa. A injustiça contra os pobres continua cruel.

"A sociedade é violenta porque não há respeito. Nem pela vida humana. Se mata por nada. Temos medo de sair para a rua porque não há policiamento. A impunidade domina. As torcidas organizadas deveriam acabar. Estão infestadas de criminosos, bandidos. Todos sabem, mas ninguém age. Político não quer ficar mal com torcida nenhuma. Tem medo de perder eleição. E os bandidos fazem a festa. "Essa história de narrador dizer o time que torce é algo que vai contra a sua própria credibilidade. Se ele assume ser palmeirense, todos vão pensar que ele vai puxar sardinha para o Palmeiras no jogo. Estes anos de carreira me fizeram mudar. A minha torcida, de coração, é para os amigos que tenho nos diversos clubes. A minha grande alegria foi ver o Corinthians campeão em 1977. Pelo Oswaldo Brandão, que era meu grande amigo. E nunca fui corintiano. O Galvão Bueno só revelou agora que é flamenguista porque não narra mais Campeonato Brasileiro. Aí é fácil..." "Pode reparar, a Globo transmite cada vez mais dos seus estúdios. Os narradores e comentaristas evitam ir aos estádios por causa dos torcedores violentos. Dos bandidos que se infiltram nas organizadas. Eu só tive problema uma vez. Ao ir narrar no Parque Antártica. Sabia que os torcedores prometeram bater em mim porque tinha criticado o time. Fui e saí de camburão. Uma situação deprimente. A nossa sociedade não aceita mais opinião contrária. Veja o ódio nas redes sociais. Opine sobre qualquer assunto. Quem for contra, só falta te matar. É essa falta de respeito que eu não me conformo. "Nós, na década de 70, no auge da Ditadura Militar, éramos muito ingênuos. Os narradores de futebol se deixavam levar pela emoção que o futebol provoca. Não tínhamos informação sobre as atrocidades dos militares. Só muito depois tomamos essa consciência. A alegria do esporte foi usada para disfarçar tudo de ruim que acontecia. Hoje isso não acontece porque perdemos a ingenuidade.

"Quando soube o que acontecia já era tarde. A minha maneira de ironizar os militares foi dar o resultado do jogo do Bicho nas transmissões dos jogos. Meus companheiros ficavam desesperados e achavam que eu era louco. Mas era querer mostrar que eles não mandavam em tudo. Só que mandavam. Quando me levaram para uma delegacia e me interrogaram sobre o jogo do Bicho, entendi o que poderia acontecer. E parei. "Fiquei extremamente decepcionado quando descobri quem era de verdade o senhor João Havelange. Tinha mesmo o maior orgulho dele ser brasileiro e ter revolucionado o futebol mundial. Revolucionou a Fifa. Enxergou a força dos patrocinadores, da televisão. E achei que ele teve uma vida limpa. Mas quando vi e comprovei as várias denúncias de envolvimento de ISL, tráfico de armas e tantos absurdos, me choquei. Percebi o quanto eu e minha geração fomos enganados por este homem. "A Globo pode até ter tido apoio dos militares. Mas ela só se apoderou do futebol de verdade, em 1982. Quando transmitiu com exclusividade a Copa de 1982. As outras tevês não pagaram a taxa de transmissão que a Fifa exigiu. E a Globo deitou e rolou, com aquele time fantástico do Telê Santana. Foi para esta Copa que fui convidado para trabalhar. Mas quando perguntei se seria eu ou o Luciano do Valle quem transmitiria a final, percebi que seria o Luciano. E que estava sendo contratado para ser mais um. Na verdade, a Globo queria ferrar a Record. Não fui. A Record transmitiu a Copa pela rádio. E tivemos uma audiência enorme com a campanha: "veja o jogo na Globo e ouça a Record". Nossa audiência foi sensacional.

"Nunca chorei em nenhuma partida. Por mais dolorida que fosse a derrota. Por respeito aos telespectadores e ao meu emprego. Não posso me deixar dominar pela emoção. Em 1982, quando o Brasil perdeu para a Itália, olho para o meu lado e vejo o Flávio Prado chorando. Ele é uma das pessoas com quem mais gostei de trabalhar na vida. Companheiro de verdade. Mas fiquei louco. Perguntei "por que você está chorando?" E falei: "faça o seu trabalho. As pessoas estão esperando para ouvir os motivos que fizeram o Brasil perder. A sua opinião". Ele engoliu o choro e fez uma análise profunda, correta do que aconteceu em Sarriá. Ele entendeu na hora. Precisamos ter o nosso distanciamento. Muitas vezes não é fácil. Mas é nossa obrigação. "Eu tirei a gravata, o gesso do Galvão Bueno e das transmissões esportivas da Globo. Trabalhando na concorrência, acabei com o padrão que o Boni impunha. Humanizei o futebol. Ele queria que as narrações fossem amarradas, como na Inglaterra. Mostrei que o brasileiro vê o futebol com descontração. Não é um aniversário da rainha da Inglaterra, no palácio de Buckingham. "Não aceitei ir para a Globo e não tenho o menor arrependimento. Por anos, a Globo contratava as pessoas que faziam sucesso em outros canais e tirava a alma. Só para encaixar no padrão imposto pelo Boni. Sempre tive a minha personalidade e não iria me sujeitar. Fui muito sincero quando o Nilton Travesso me convidou. Disse não e não me arrependo. Se tivesse ido naquela época, iriam matar o meu estilo. "Se já me ofereceram dinheiro para falar bem de algum jogador, algum técnico ou quem quer que seja? Não. Esse tipo de gente sabe muito bem quem procurar. Eu falaria no ar se alguém tentasse me corromper. Iria virar caso de polícia. Se eu conheço alguém que aceitou dinheiro? Torço de coração que não. Prefiro acreditar que os elogios e críticas que ouvi de pessoas que sentaram ao meu lado sempre foram sinceros. "Ser descontraído na transmissão esportiva não é sinônimo de gritaria. Eu não acredito no que acompanho por aí. Transmitir emoção não é berrar no ouvido do pobre telespectador. É pura falta de rumo, de orientação. Mas uma das falhas dessa nova geração é não escutar conselho de ninguém. Acredita que já nasceu pronta.
"Não me iludo. Sei que não estamos na Inglaterra ou na Itália, onde a experiência, a maturidade são respeitadas. Lá são países evoluídos. Aqui, não. A pessoa é rotulada de velha, improdutiva, aos 40 anos. Conheço inúmeros jornalistas importantes, muito bons, desempregados. E sem chance de recolocação. O pecado que cometeram é ter envelhecido. Eu sou uma exceção. E não tenho orgulho disso. Queria que o padrão de emprego fosse a competência e não só a beleza, a juventude.

"Narrei nove Copas do Mundo. Adoraria narrar a décima, na Rússia, na Rede TV! Onde me sinto bem, sou respeitado e tenho muito respeito pelos meus companheiros. Se acontecer, ótimo. Se não, Deus já me deu muito. Também sou muito orgulhoso do trabalho que faço na rádio Transamérica. Com a equipe que tenho ao meu lado. Trabalho na rádio e na tevê com o mesmo tesão de um garoto. Só posso agradecer a esses mais de 62 anos de carreira. É um privilégio fazer o que amo.

"Onde estava nos 7 a 1? Comendo churrasco com a minha família. O que tenho a falar do que senti? Que a carne estava dura...Brincadeira. Só constatei o nosso atraso. O campo refletiu o problema que temos na gestão do futebol no Brasil. É tudo amador. O reflexo maior chegou onde deveria. Na Seleção Brasileira, em uma Copa do Mundo aqui dentro. O pior é que não adiantou nada. O que mudou?


"Tenho respeito enorme pelo meu trabalho. Me preparo para as transmissões. Estudo times, jogadores, esquemas. Chego três horas antes sempre. Cuido da minha voz, me atualizo. Fui um dos primeiros a ter twitter, facebook, página na Internet. Acompanho a modernidade. Nunca me acomodei acreditando que já sei tudo. Isso é respeito ao seu empregador. A quem te contrata. Sempre fui assim. E vou morrer assim.

"Aposentadoria? Não me interessa. Se eu parar, eu morro. Se não me quiserem mais no futebol, viro taxista, feirante, o que for. É o trabalho que me mantém vivo. Não vou ficar sentado em frente à televisão esperando a morte chegar. Eu, não. A minha amada Márcia, uma das melhores cantoras deste Brasil, modéstia à parte, não gosta de viajar. Para não enlouquecê-la é melhor eu sair para trabalhar.

"O que eu deixo de legado? O orgulho e o amor que tenho pela minha família, em primeiro lugar. Na área profissional, a certeza de sempre ter trabalhado com muita ética, dedicação, respeito à profissão e ao ser humano. Nas minhas brincadeiras, nunca humilhei ninguém, graças a Deus. Nunca fiz e nunca farei bullying com ninguém para fazer graça. Dei e dou o meu melhor a cada dia. E tenho o enorme prazer de ser reconhecido em vida. Tive essa sorte, ao contrário de muitos. Quando estiver morto dispenso as homenagens."

   

Fonte: Esportes R7
Autor: cosmermoli
Publicado em: 02 Nov 2016 10:38:32

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