sexta-feira, 7 de outubro de 2016

"As condenações da Justiça dos Estados Unidos serão o fim da Fifa. Jornalistas esportivos agem como fãs. E facilitam a existência de bandidos no futebol." O alemão Thomaz Kistner revela as sujas entranhas do esporte mais popular do mundo...

"As condenações da Justiça dos Estados Unidos serão o fim da Fifa. Jornalistas esportivos agem como fãs. E facilitam a existência de bandidos no futebol." O alemão Thomaz Kistner revela as sujas entranhas do esporte mais popular do mundo...




Thomas Kistner é um crítico do atual jornalismo esportismo. O alemão de 57 anos não se conforma com a cobertura apenas dos jogos, o que considera "cobertura de fãs". Não se cala porque percebe o quanto de sujeira domina o esporte mais importante do planeta. Ele se especializou em investigações longas. E escolheu como temais dois assuntos áridos, mas fundamentais. A corrupção na Fifa e o doping no futebol. Em 2006, ganhou o prêmio de melhor jornalista esportivo da Alemanha. Autor de "Fifa Máfia", o livro negro dos negócios do futebol. Kistner desvenda a podridão que envolveu os patrocinadores e como eles tornaram a Fifa tão poderosa. Mas ele adverte. Acredita que as investigações do FBI não terminaram. E ainda acabarão por obrigar a Fifa a fechar suas portas, tamanha a multa que será obrigada a pagar. E aposta na criação de uma nova entidade para controlar o futebol mundial. No ano passado, lançou "Shot" sobre doping no futebol. Kistner está no Brasil para um evento sobre jornalismo investigativo em São Paulo. A Folha fez uma entrevista chocante com o jornalista. Nela há peças fundamentais, capazes de explicar como a Fifa se tornou tão poderosa, tão bilionária. E como tanta gente corrupta se aproveitou da força do futebol... Em que aspectos as semelhanças entre a Fifa e a máfia italiana são mais evidentes? Thomas Kistner - Ambas são núcleos familiares fechados. A própria Fifa se considera uma família: a "família do futebol", a "família Fifa". São como seus colegas do Comitê Olímpico Internacional (COI), que se tratam como a "família olímpica". A "família Fifa" se comporta em pontos-chave ao estilo da máfia. Há um patrono, ou presidente, com poder absoluto, sabe tudo e pode recompensar e punir qualquer um. A palavra dele é lei. Claro que, oficialmente, há regras escritas na Fifa, mas ninguém se importa com elas, como nós pudemos aprender com as investigações do FBI. Além disso, prevalece uma completa ausência de controle externo. Lembre-se da frase famosa de Blatter: "Os problemas da família do futebol devem ser resolvidos dentro da família". Ou seja, não por júris independentes. Outro ponto é que em ambas uma mão lava a outra. Só é possível alcançar posições de destaque se você ajudar os chefes. Contribuindo com eles, por exemplo, para vencer esses eventos que eles chamam de "eleições" -tudo está previamente arranjado.

A Fifa e a máfia se assemelham ainda ao oferecer cargos e empregos a filhos, tios, sobrinhos, amigos próximos, que trabalham em empresas secretas mundo afora. Há uma enorme rede de negócios em torno da Fifa que inclui parentes de dirigentes.
Ao longo do livro, chama a atenção a engenhosidade com que o empresário Horst Dassler manobrou o negócios do esporte. Poderia comentar as principais estratégias usadas por ele? Ele foi um visionário manipulador. Tinha muito tino para captar os avanços nesse universo da política do esporte, percebia o que viria pela frente. Seu primeiro passo foi comprar os atletas oferecendo a eles equipamentos esportivos, depois dando dinheiro diretamente. A próxima etapa foi subornar funcionários ligados ao esporte. Por fim, ele fez com que seus próprios funcionários fossem admitidos nas federações, e alguns se tornaram presidentes dessas entidades. Trabalhava como um agente secreto, seus funcionários tinham que atuar como um serviço secreto: observando todos, manipulando, procurando material para chantagear aqueles que não se comportavam como ele gostaria. Ele criava dossiês a respeito de pessoas que poderiam ser úteis para os seus objetivos. No hotel onde hospedava seus convidados, havia grampos. Por outro lado, ao viajar para a antiga União Soviética, ele discutia com seu staff dentro do banheiro, com a água correndo, porque tinha receio de estar sendo grampeado. Ele colocava microfones escondidos para captar conversas de gente como Franz Beckenbauer. Enfim, Dassler seria o nome ideal para um filme sobre crimes econômicos. Quando morreu com apenas 51 anos, em 1987, tinha criado um novo mundo de líderes corruptos do esporte. E seu negócio original, a Adidas, acabou sendo negligenciado e sofreu um declínio que a levou a um período de dificuldades. Havelange e Blatter não existiriam tal qual os conhecemos se não fosse Dassler? Em outras palavras, eles acumulariam tanto poder e fortuna sem a influência do empresário? Blatter certamente não existiria, ele foi um dos rapazes pinçados da turma de Dassler. E Havelange não teria vencido sua primeira eleição para a presidência da Fifa, em 1974, contra Stanley Rous se Dassler tivesse apoiado o dirigente britânico. Sem ele, Havelange não teria conseguido se manter no topo, fortalecido. Ele precisava do dinheiro que Dassler obtinha dos negócios para estabilizar a Fifa e aumentar seu próprio poder.

Os atos de corrupção são evidentes na Fifa tanto na gestão de Havelange quanto na de Blatter. Em qual deles, a ganância era maior? A ganância e a vaidade são doenças que se tornam piores com o passar do tempo. Ao longo de décadas, esses dirigentes descobriram que podiam fazer praticamente tudo nesse vácuo de legalidade que é o mundo do esporte. Sabiam que não seriam pegos. Assim, é natural que a ganância só cresça, é a lei da natureza. Mas esta é uma questão sobre quantidade, não sobre qualidade. Havelange morreu em agosto deste ano e foram raras e discretas as manifestações de pesar por parte de dirigentes e organizações esportivas. A que o senhor atribui esse comportamento? Os camaradas fazem negócios obscuros juntos, tratam-se como amigos ou mesmo familiares, abraçam-se e beijam-se sempre quando se encontram. Mas quando um deles entra em declínio logo descobre que não há, de fato, amigos nesse mundo do esporte, não há laços reais nessa "família". Quando morreu, o nome de Havelange já estava arruinado, era notório que ele tinha ganho muito dinheiro e teve que deixar a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional. Qualquer um que se aproximasse dele poderia ficar marcado como corrupto. Nos últimos anos, ninguém precisava mais de Havelange para levar os seus planos adiante. Simples assim. Soa brutal, mas é a verdade. Essa estrutura da Fifa conseguiu se manter distante de ameaças por pelo menos quatro décadas. O que explica tamanha letargia para uma investigação? São muitos os problemas. O principal é a estapafúrdia autonomia do esporte. Essa é uma característica realmente nonsense, que vem do tempo em que o esporte era dominado por atletas amadores. Naquela época, essa autonomia se justificava -no esporte amador, ainda se justifica. Mas não faz sentido no esporte com fins comerciais, que movimenta mais dinheiro que Hollywood e a indústria da música juntos. A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos se tornaram eventos que faturam bilhões de dólares. Imagine se a Petrobras não pudesse ser acompanhada por investigadores da polícia, por promotores. Você sabe que existem problemas de corrupção envolvendo políticos e diretores da empresa, mas são eles próprios, os homens de dentro, os responsáveis por esclarecer esses casos. Seria uma piada absurda. Além disso, há fortes motivos para que a Fifa e o COI estejam sediados na Suíça. O país fez de tudo por um longo período para abrigar as principais federações esportivas. Ofereceu isenção de impostos e uma Justiça muito, muito frouxa. Outro problema é a natureza transnacional do esporte. A partir do momento que o dinheiro atravessa fronteiras, é difícil determinar qual autoridade ficará responsável por monitorar essa movimentação. Por isso, é preciso que haja uma força policial capaz de cruzar quase todas essas fronteiras. Com essa escala global, há só uma, o FBI. Essa polícia dos EUA começou a investigar a Fifa antes de 2010, mas esse é um trabalho que leva tempo até que se possa escavar uma conspiração financeira de proporção global. O trabalho está em andamento, cuidadosamente, o que é um bom sinal.

O senhor acredita que a investigação do FBI vai continuar, com novas prisões? Sim. É um longo caminho para alcançar o centro das articulações criminosas em torno da Fifa. E, claro, no fim, não irão para a cadeia apenas poucos dirigentes do Paraguai e da Bolívia. Blatter, Jack Warner [ex-presidente da Concacaf], Jeffrey Webb [também ex-presidente da Concacaf], Jerome Valcke [ex-secretário-geral da Fifa] e alguns outros são os principais personagens, são aqueles pelos quais a Justiça norte-americana está procurando. E ainda Ricardo Teixeira, que aparece entre os indiciados, próximo do nome de José Maria Marin, que já está passando sua temporada nos EUA. Em julho do ano passado, dois meses depois da prisão de dirigentes em meio ao congresso da Fifa, o senhor disse que a entidade poderia desaparecer em dois, três anos. Ainda acredita nisso? Sim, acredito que, ao fim do processo, a Justiça dos EUA vai aplicar uma multa tão alta à Fifa que a entidade terá que fechar as portas. É possível facilmente criar uma outra federação, que esteja ainda mais bem preparada para organizar uma Copa do Mundo. Temos à disposição tudo o que é preciso: conhecimento, dinheiro, interesse do público. O que falta ao futebol do nosso tempo é gente decente para conduzi-lo. Poderia, por exemplo, ser criada uma nova organização no âmbito da ONU. Qual a sua opinião sobre o atual presidente da Fifa, Giannni Infantino? Ele não apenas vem da mesma região de Blatter, na Suíça [Blatter nasceu em Visp e Infantino em Briga-Glis, cidades que ficam na região de Valais, no sul da Suíça]. É um homem que vem de um velho sistema e que está apenas incorporando novas pessoas. Evidentemente, a Fifa precisa dar por superados dirigentes como Infantino.

Em seu livro, o senhor diz que é incomum que a imprensa esportiva acompanhe o futebol com o rigor jornalístico que seria necessário. Por que isso acontece?

Jornalistas esportivos formam um grupo profissional bastante particular. Muitos deles não possuem uma formação adequada, não estão à altura do nível de exigência que se espera deles hoje em dia. Nas décadas passadas, bastava aos jornalistas de esporte entender sobre pênalti, impedimento ou escanteio.

Hoje isso é insuficiente. É preciso saber lidar com casos de corrupção e doping, revelando-os ou ao menos os acompanhando, além de temas políticos de modo geral. O universo do esporte integra uma sociedade global, mas possui uma autonomia [ele se refere, por exemplo, à legislação própria].

É justamente essa a razão pela qual seria ainda mais importante a existência de uma imprensa crítica, independente, íntegra. São poucos os jornalistas que cumprem essa função.

No esporte, há muitos jornalistas que são apenas fãs. Enquanto esse tipo de repórter estiver acompanhando o noticiário esportivo, os bandidos do futebol podem se sentir seguros.

Como um alemão que gosta muito de futebol, o que o senhor achou do 7 a 1?

Eu estava no Mineirão naquele dia. Fiquei chocado por duas razões. Primeiro, a Seleção [é assim que Kistner se refere à equipe brasileira, Seleção, em português mesmo e em letra maiúscula] sempre foi o time do meu coração, embora eu seja alemão. Eu viajo ao Brasil com frequência, sou apaixonado pelo país.

Mas eu também estava chocado porque vi algo que nunca havia vivenciado em centenas de jogos anteriores. Nem naqueles que acompanhei como repórter nas Copas desde 1990, nas edições da Liga dos Campeões ou no Campeonato Alemão. Nem mesmo nos jogos de que participei nas ligas amadoras alemãs. Eu nunca vi um time inteiro em colapso como aquele.

Depois de chegar ao 5 a 0, os alemães pisaram no breque. Eles sentiram que poderiam destruir um torneio inteiro se tivessem concluído o primeiro tempo com um 9 a 0 ou um 10 a 0. E um resultado assim parecia perfeitamente possível naquelas circunstâncias.

Os jogadores alemães estavam espantados com o que havia acontecido, eles não celebraram. Muitos definiram aquele jogo como a experiência mais estranha que tiveram. Eu me assustei, assim como outros jornalistas, porque parecia que os jogadores da Seleção tinham perdido o controle de suas ações.

Como jornalista, vejo esse episódio de um modo fascinante porque há uma experiência paralela.

Me lembro de Ronaldo cambaleando na final da Copa de 1998 contra a França. Nunca houve uma final de Copa com um predomínio tão evidente de um dos lados como naquele 3 a 0. E nunca um time teve um desempenho tão frágil numa semifinal de Copa como o Brasil no Mineirão. Como isso aconteceu? O que ocorreu antes desses jogos?

De qualquer modo, no fundo do meu coração, eu fiquei feliz quando, em agosto deste ano, eu vi a Seleção vencer a medalha de ouro no estádio do Maracanã. A Seleção definitivamente merecia isso...


   

Fonte: Esportes R7
Autor: cosmermoli
Publicado em: 07 Oct 2016 11:54:39

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