sábado, 4 de junho de 2016

Muhammad Ali e Pelé. O talento extraordinário esportivo os uniu. Mas a postura, a coragem, a visão da vida, da discriminação racial os fizeram muito diferentes. Quem merece ser chamado de Rei?

Muhammad Ali e Pelé. O talento extraordinário esportivo os uniu. Mas a postura, a coragem, a visão da vida, da discriminação racial os fizeram muito diferentes. Quem merece ser chamado de Rei?




"O universo do esporte sofre uma grande perda. Muhammad Ali era meu amigo, meu ídolo, meu herói. Passamos muitos momentos juntos e sempre mantivemos contatos todos esses anos. A tristeza é enorme. Desejo que ele descanse junto a Deus e amor e força à sua família." Essa foi a homenagem de Pelé, no facebook, a Cassius Marcellus Clay Junior, que se fez Muhammad Ali-Haj pela conversão ao islamismo. "Amigo, ídolo, herói", escreveu o melhor jogador de futebol de todos os tempos. O talento extraordinário esportivo os uniu. A postura, a atitude, a coragem, a visão da vida, da discriminação não poderiam tê-los tornado tão diferentes. Os dois são conhecidos mundialmente como Rei. Mas um só merece de verdade tal veneração. Pelé sabe muito bem o quanto o Brasil é um país racista. Ainda em Bauru, começou a namorar uma menina branca. O pai dela quando soube que seu namorado era negro, fez questão de espancá-la na rua. E proibiu o relacionamento. Ao chegar no Santos, adolescente, foi apelidado de Gasolina, em referência à negritude do petróleo. Tolerou, não se indispôs. Na Copa de 1958, caçula do time, era chamado ironicamente de Alemão. Ao voltar para o Santos, campeão do mundo, foi tratado até o final da carreira como Crioulo. Até em jornais e revistas. Pelé ficou revoltado em 2014 quando Aranha denunciou ter sido chamado de "macaco" quando era goleiro do Santos e enfrentava o Grêmio no Olímpico. "O Aranha se precipitou em querer brigar com a torcida. Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todos os jogos iriam parar. O torcedor grita mesmo. Temos que coibir o racismo. Mas não é num lugar publico que você vai coibir. O Santos tinha Dorval, Coutinho, Pelé... todos negros. Éramos xingados de tudo quanto é nome. Não houve brigas porque não dávamos atenção. Quanto mais se falar, mais vai ter racismo." É impossível imaginar Muhammad Ali ser chamado de macaco, crioulo, gasolina, alemão e ele ter se calado. Ele cresceu pobre nos Estados Unidos. Seu pai era pintor de paredes e sua mãe empregada doméstica. Começou no boxe depois de ter sua bicicleta roubada. Foi se queixar ao chefe de polícia de Louisville, Joe E. Martin. E disse que bateria no ladrão se o encontrasse. Tinha 12 anos. Joe disse que se quisesse brigar, teria de aprender boxe. E Cassius aceitou o convite.

Dono de um talento fenomenal, aos 18 anos foi representar os Estados Unidos, na Olimpíada de Roma. Ele enfrentou o polonês Zbigniew Pietrzykowski, de 25 anos e favorito. Sua velocidade, precisão, jogo de pernas e confiança, chocou o mundo. Foi campeão. Mas não desfrutaria da medalha olímpica. Logo após a conquista, um jornalista soviético perguntou como era viver em um país onde não podia entrar em vários restaurantes, todos reservados para brancos. Ele enfrentava nos anos 60 nos Estados Unidos, país marcado pela segregação. Havia estados onde onde os melhores lugares dos ônibus, bebedouros, banheiros, restaurantes eram para brancos. Se um negro namorasse ou até casasse com uma branca era acusado de estupro. Aos 18 anos, Ali ficou incomodado com a pergunta, mas disse que nos Estados Unidos havia mais lugares onde aceitavam os negros do que os que o barravam. Só que ficou profundamente incomodado. Sabia do racismo. Louisville no Kentucky, era uma cidade onde o preconceito dominava. Sua ingenuidade iria acabar de uma forma constrangedora. Com a medalha de ouro no pescoço, acreditava que o preconceito não valia para ele. Até entrar em um restaurante em Louisville reservado para brancos. E tentar pedir hambúrgueres. As garçonetes fingiam não ouvir. Se recusaram a atendê-lo. "Eu sou campeão olímpico pelos Estados Unidos", dizia. Ninguém prestou atenção. Envergonhado, foi embora. E jogou a medalha de ouro no rio Ohio.

Jurou que faria algo não só por ele. Mas pelos negros. Usou todo o seu talento midiático. Sabia que frases de efeito faziam a festa dos repórteres. Tinha seus favoritos, para quem dava as declarações mais bombásticas. Logo chamou a atenção dos Estados Unidos. Por seu talento absurdo e por sua arrogância. Seu inconformismo com a segregação exposta nas entrevistas logo atraíram a atenção de Malcom X e Elijah Muhammad, negros e líderes muçulmanos. A aproximação logo se transformou em conversão. Ele fez questão de adotar um novo nome Muhammad Ali-Haj. Disse que Cassius Marcellus Clay Junior era o nome de escravo, que os homens brancos haviam dado. Campeão mundial, aproveitava cada entrevista para mostrar sua revolta contra o racismo nos Estados Unidos. Até que veio a convocação para lutar no Vietnã. Ali sabia que não lutaria de verdade. A participação seria apenas simbólica. Se recusou a ir. "Não tenho motivo para matar nenhum vietnamita. Nenhum deles me chamou de crioulo." A referência era clara à segregação nos Estados Unidos. Seu título mundial pela decisão de aceitar a convocação para a guerra. Não mudou sua decisão. Ironizou a situação. Posou para a capa da revista Esquire como São Sebastião, tomando várias flechadas. Foi um escândalo nos Estados Unidos.

Perdeu três anos como atleta. Talvez os melhores de sua carreira. Mas garantiu que nunca se arrependeu. Não defenderia um governo segregacionista. Voltou, foi campeão de novo. Fez lutas fantásticas. E nunca perdeu uma oportunidade de protestar, exigir os direitos dos negros. Bem ao contrário de Pelé, que se calou não só contra o racismo no Brasil. Mas também diante da Ditadura Militar. Amigo íntimo de João Havelange. Brigou com Ricardo Teixeira. Mas fizeram as pazes. E apoiou como ninguém a Copa do Mundo de 2014, seus estádios superfaturados, seus elefantes brancos. Tinha seus motivos. Com o Mundial no Brasil, faturou R$ 58 milhões. Apesar das denúncias de trabalho escravo, violação dos direitos humanos e centenas de mortes de operários na construção de estádios no Catar, adivinhe quem se ofereceu para ser garoto-propaganda da Copa de 2022? Sim, Pelé.
Lógico que cobrando. No momento, Pelé está ocupado. Fazendo leilão em Londres de vários itens pessoais. Ele não quis deixar no Museu Pelé que foi construído em Santos, em sua homenagem. Preferiu vender. A previsão é que fature cerca de R$ 25 milhões. Promete dar uma pequena parte do arrecadado a um hospital em Curitiba. O resto ficará no seu bolso. O brasileiro também é questionado até hoje por não reconhecer sua filha Sandra. Apesar de exames de DNA provarem a paternidade, ele não quis vê-la nem no leito de morte.

Mesmo após encerrar a carreira como lutador, e enfrentar 32 anos do Mal de Parkinson, Muhammad Ali continuava empenhado politicamente. Em 1990, o ex-pugilista, então envolvido em causas políticas, viajou ao Iraque para negociar com Saddam Hussein a libertação de 14 reféns norte-americanos. Aos poucos, os tremores e a rigidez foram tomando conta do seu corpo. Mas não de sua mente. Se colocou contra o candidato à presidência dos Estados Unidos, o bilionário Donald Trump. Por seu discurso contra os latinos. Muhammad Ali recebeu os prêmios de atleta do século pela revista Sports Illustrated e personalidade esportiva do século pela BBC. Além disso, foi nomeado Mensageiro da Paz pela ONU e condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade, maior honra civil norte-americana.
"Um homem que lutou por nós. Ele se juntou a [Martin Luther] King e [Nelson] Mandela; ficou quando isso era difícil; falou quando outros não falariam. Sua luta fora do rinque lhe custaria seu título e seu posicionamento público. Isso lhe rendeu inimigos à esquerda e à direita, fez com que fosse insultado e quase o levou para a cadeia. Mas Ali se manteve firme. E sua vitória ajudou que nos acostumássemos à América que nós reconhecemos hoje." Essas foram as palavras que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reservou a Muhammad Ali. Quando Pelé se for, o que se poderá dizer dele fora dos gramados? Quem merece ser chamado de Rei?




Fonte: Esportes R7
Autor: cosmermoli
Publicado em: 04 Jun 2016 18:00:51

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