sábado, 27 de junho de 2015

Dunga não é racista. É ignorante. Não tem o direito de comparar o seu sofrimento, pelas críticas que recebeu como jogador, com o flagelo dos negros. Ele é o técnico de que país? Suécia? Alemanha?

Dunga não é racista. É ignorante. Não tem o direito de comparar o seu sofrimento, pelas críticas que recebeu como jogador, com o flagelo dos negros. Ele é o técnico de que país? Suécia? Alemanha?




"Simples. Nós éramos ruins com sorte, os outros eram bons com azar. Aquela seleção tinha uma cobrança de 40 anos sem Copa América e 24 anos sem uma Copa do Mundo. Eu até acho que eu sou afrodescendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham para mim: "Vamos bater nesse aí". E começam a me bater, sem noção, sem nada. "Não gosto dele" e começam a me bater." "Acho que sou afrodescendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham para mim. "Vamos bater nesse aí".E começam a me bater, sem noção, sem nada. Não gosto dele e começam a me bater." Primeiro o contexto completo. A maneira tosca com que Dunga desde 1994 compara o sucesso da Seleção Brasileira mecanizada, sem brilho, que deve a Romário a conquista do Mundial dos Estados Unidos. Ele quer, e não consegue, a reverência do time maravilhoso montado por Telê Santana e que perdeu a Copa da Espanha em 1982. Lembrado com muito mais carinho do que aquele de Parreira. Depois, a ignorância. A visão ultrapassada, digna do século 19. Inaceitável para o treinador de um país não só pentacampeão do mundo. Mas de profunda mistura de raças. E que por séculos tratou os negros como escravos, hipocrisia, preconceito. Dunga só mostrou que ainda trata.

No censo racial de 2010 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o resultado foi transparente. A grosso modo, o Brasil é formado por 91 milhões de brancos, 82 milhões de pardos, 15 milhões de pretos, dois milhões de amarelos e 817 mil indígenas.

Como é que a pessoa responsável por selecionar, escolher os brasileiros que formarão a Seleção pensa de forma tão deprimente? Não foi apenas uma frase fora do contexto, como querem alguns defender o treinador da Seleção, com interesse em futuras entrevistas exclusivas, acesso a informações. Hipócritas e aduladores de sempre. Dunga teve todo o tempo do mundo para, diante dos microfones, expor o que pensa. Afrodescendente não é uma palavra que utilize normalmente no seu vocabulário. Ele comparou toda as críticas que recebeu quando a Seleção fracassou na Itália, ao massacre que por séculos os negros sofreram e sofrem neste país. Ser taxado de jogador limitado, incapaz de mostrar técnica como Falcão ou Cerezo, e ser especialista em carrinhos, entradas bruscas. Ser acusado de ter futebol limitado, truculento, robotizado doeu. Incomodou ver estampado em jornais e revistas o injusto batizado de que resumiu o time derrotado em 1990, a "geração Dunga". Mas a ignorância da comparação é assustadora. Os martírios dos negros neste país foi e continua sendo enorme. Milhões deles foram sequestrados na África. Foram tratados como animais. Foram transportados em condições subumanas em navios negreiros. Sujeitos a pestes, doença, fome, sede, falta absoluta de higiene. Em semanas pelo mar, era comum entre 20% a 30% morrerem nas viagens que levavam semanas. Os mortos eram atirados ao mar.

Historiadores como Sérgio Buarque de Holanda contabilizaram entre quatro e cinco milhões de negros que chegaram ao Brasil. Outros acreditam que foram oito milhões. Ao desembarcar por aqui eram açoitados para trabalhar na agricultura. A grande maioria não era escrava na África. Muitos eram torturados até a morte em praça pública, para servir de exemplo. Não tinham direitos civis. Eram utensílios domésticos. Não eram considerados seres humanos plenos. Trabalhavam até 16 horas por dia. Eram amontoados em barracões, as senzalas. A comida era pouca, controlada. As torturas eram constantes. As mais cruéis possíveis. Mutilações por desobediência ou pouca produtividade eram normais e aceitas pela sociedade. Os que fugiam eram enforcados, sem direito a ser enterrados. Para impedir que outros tivessem a mesma ideia. Viviam, em média, 30 anos.

E não precisava ser muito rico para ter o seu escravo. Levantamentos mostram que um terço das residências de Belo Horizonte e Salvador tinham o seu. Portugal resistiu o quanto pôde para o fim da escravidão. A atividade de compra e venda de negros era altamente lucrativa. Os primeiros navios negreiros chegaram ao Brasil entre 1520 e 1550. Foram mais de 300 anos até que o império brasileiro copiasse o que acontecia no mundo civilizado, a Europa. E libertasse os escravos em 1888. Mas não foi tão bonitinho quanto parece. Depois que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, a luta pelos direitos básicos como andar pelas ruas, obter documentos, trabalhar e receber dinheiro, poder comprar uma casa, ter uma propriedade foram conquistas que levaram décadas. Só em 1951 foi criada a primeira lei para enfrentar a discriminação. A Afonso Arinos. Só a partir dela, instituições comerciais foram obrigadas a aceitar os negros. Eles eram impedidos de entrar em restaurantes, bares, clubes, lojas. O preconceito racial existe e é forte até hoje. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou este ano que o negro tem duas vezes e meia maior chance de ser assassinado do que o branco. 53% dos presos são negros no Brasil. O acesso à educação é mais difícil. As cotas nas universidades não foram criadas por acaso. Dunga teve a coragem de se comparar aos "afrodescendentes" no seu sofrimento como jogador de futebol. Só que foi muito além. Disse algo imperdoável. "Acho que sou afrodescendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar." Quer dizer que ele acha que o negro além de ter apanhado, "gosta de apanhar"?
Carlos Caetano Bledorn Verri é gaúcho, tem a ascendência italiana e alemã. É branco. Mais do que tudo, é brasileiro. Mora em Porto Alegre. Convive com o preconceito aos negros todos os dias. Não só na sua cidade, mas em todo o país. Será que ele não sabe que jogadores negros tinham de colocar pó de arroz, se disfarçar de brancos para jogar futebol no Brasil? Já se esqueceu de Aranha que foi chamado de macaco no estádio do Grêmio, do lado de sua casa? A irresponsabilidade de suas palavras não pode ser esquecida com um mero pedido de desculpas por escrito. Feito por assessores de imprensa. Não estivesse tão preocupado em continuar no cargo, o presidente da CBF, Marco Polo del Nero, deveria exigir uma postura mais digna. Se não a demissão, pelo menos a convocação de uma coletiva para o treinador se explicar. Não aproveitar a emoção de um mata-mata hoje, contra o Paraguai, e se desculpar rapidamente antes de começar a falar sobre o jogo. Mas Marco Polo não pensa em ir ao Chile, país que, coincidentemente, tem acordos de extradição com os Estados Unidos bem menos complexos que o Brasil. A falta de discernimento de Dunga é mais ofensiva do que a visão preconceituosa. Racista ele não é. É ignorante. Ele desconhece a sofrida história da população negra do seu país. A constante luta pela igualdade. Que está longe de terminar. Precisava saber. Até uma questão de respeito ao cargo que ocupa. Quantos negros convocou para a Seleção?
Quantos negros obedecerão suas ordens contra o Paraguai? Quantos negros estão torcendo pelo time que comanda? Pelé e Garrinha eram brancos? Ronaldo e Romário são amarelos? De que cor é Neymar? Chegamos sim ao fundo do poço. Nunca estivemos tão mal representados em todas as áreas deste país...




Fonte: Esportes R7
Autor: cosmermoli
Publicado em: 27 Jun 2015 08:25:43

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