terça-feira, 3 de maio de 2016

Por trás do milagre. Como o pequeno Leicester derrubou os bilionários rivais e conquistou o título inglês. A superação de um grupo humilde e um técnico envelhecido, humilhado. Foi a vitória do futebol...

Por trás do milagre. Como o pequeno Leicester derrubou os bilionários rivais e conquistou o título inglês. A superação de um grupo humilde e um técnico envelhecido, humilhado. Foi a vitória do futebol...




"A sua missão é manter a equipe na Primeira Divisão. Não podemos ser rebaixados. Na temporada 2016/2017 pensaremos em montar um time forte para tentar chegar à Liga Europa, com o quinto lugar. Sonhar com um futuro melhor. O que importa agora é não cair." Jornalistas ingleses revelam que foram essas as palavras de Vichai Srivaddhanaprabha para o italiano Claudio Ranieri. O técnico acabara de ser responsável por uma das maiores vergonhas de todos os tempos do futebol grego. Comandou a seleção por quatro partidas. Empatou com a Finlândia e perdeu para a Romênia, Irlanda do Norte. E foi demitido sem dó quando a Grécia teve a coragem de perder para as Ilhas Faroe. O surreal encontro entre o dona da nona fortuna da Tailândia com um treinador decadente mudou o cenário do futebol mundial. O comprador do Leicester por 40 milhões de libras, cerca de R$ 206 milhões queria ao menos escapar da Segunda Divisão. Nem ele acreditava em algo mais significativo. Não há quem não esteja dissecando a conquista da Premier League pelo modesto clube. Pequeno diante dos gigantes Manchester United, Manchester City, Chelsea, Liverpool, Arsenal... Em 132 anos de história, sua estrutura era para não incomodar. Ser um mero coadjuvante. O clube estava na Terceira Divisão em 2009. Voltou da Segunda em 2014. Entre os vinte clubes da Premier League é apenas o 18º em relação ao que recebe de patrocínio. 14º ao que ganha da transmissão dos jogos. Tem apenas a 17ª folha salarial.

A estrutura é toda de um clube pequeno. Para os absurdos parâmetros ingleses. Não é por acaso que o título conquistado ontem, com duas rodadas de antecedência, é tratado como um milagre. Só que os céus não têm nada a ver com o que aconteceu com o Leicester. A conquista tem absolutamente tudo a ver com o perfeito casamento entre um elenco promissor, comprometido, competitivo com as ideias de um treinador querendo dar a vida para esquecer a humilhação. A esperteza em tornar os atletas cúmplices, amigos. Saídas surreais como para comer pizzas preparados por eles mesmos. A barreira da hierarquia era derrubada facilmente pela troca de olhares. A parceria real entre técnico e time.

Com a providencial ajuda dos bilionários clubes ingleses vivendo péssimos momentos. A demissão de Mourinho no Chelsea, os graves problemas de adaptação de Van Gaal no Manchester United. A antecipação do anúncio da chegada de Pep Guardiola ao Manchester City, tirando a motivação de Manuel Pellegrini. Como diria a última virgem de Caxias do Sul, o "destino conspirou". O encaixe dos jogadores ao sistema de forte marcação e velocidade nos contragolpes de Ranieri foi perfeito. Os herói cantado em verso, prosa e gols é Vardy. Sim, sua história é fantástica. Ele conciliava a vida de operário em uma fábrica de fibras de carbono com os jogos pelo Stocksbridge, da 8ª Divisão Inglesa. Em 2010, subiu na vida. E defendendo o Halifax, marcou 66 gols. 27 deles foram decisivos na conquista da 7ª Divisão. Tudo melhoraria de vez ao ganhar o título da 5ª Divisão, com o Fleetwood Tow. Marcou 31 vezes. No ano seguinte, estava no Leicester. Em 2016, bateu o recorde da Premier League com pelo menos um gol em 11 jogos seguidos. E se tornou atacante da Seleção Inglesa. Sua história é cativante, surpreendente.

Outro improvável trio se uniu na equipe de camisa azul. O argelino Mahrez, o volante francês N"Golo Kanté. E o atacante japonês Okazaki. Ainda no primeiro turno, quando a campanha do Leicester era fabulosa, o clube recusou diversas propostas pelo quarteto abertura da janela em dezembro passado. Porque Vichai Srivaddhanaprabha ouviu Ranieri. O italiano garantiu que seria fundamental ao clube segurá-los até pelo menos o fim do Campeonato Inglês. E fez o mais difícil. Os convenceu a ficar. Jurou que suas carreiras mudariam para sempre caso continuassem. A campanha foi fabulosa. O King Power Stadium com seus 32 mil torcedores se transformou em um caldeirão alucinante. O time era empurrado pelos gritos de incentivo, pela alegria e orgulho de uma cidade acostumada a passar vexames com o futebol. Não há beleza no futebol do Leicester. Marcação fortíssima, pegada desenvolvida nas décadas que Ranieri conviveu com o "catenaccio" italiano. Como os meias e atacantes fechando as intermediárias. A evolução vem quando o time inglês rouba a bola. Nada de tiki taka do Barcelona. Ter a posse de bola não é a adrenalina que faz o coração do treinador pulsar. Não. Ele desenvolveu lançamentos em velocidade, e contragolpes em bloco, pegando a defesa adversária desarrumada. O Leicester é hoje uma das equipes melhores treinadas do futebol moderno.

Não enche os olhos do amante de futebol espetáculo. É competitiva, objetiva, com seus jogadores sabendo o que precisam fazer. Sem precisar enxergar o companheiro. Sabem onde ele estará. Isso é mérito total da simbiose, da cumplicidade entre Ranieri e o grupo de jogadores que caiu nas suas mãos. Ele redescobriu o prazer de competir por um título. O arrogante José Mourinho em 2008 treinava a Inter de Milão e tinha em Ranieri seu rival, pela Juventus. "Ranieri disse que vencer não é importante para ele. Essa mentalidade explica bastante porque, na idade dele, nunca tenha conquistado títulos importantes. Talvez precise mudar de ideias, mas talvez seja muito velho para isso." O destino mostrou a precipitação do "Special One". Mourinho hoje está desempregado e o italiano "velho demais", aos 64 anos, é campeão da Premier League. O time que era um dos certos rebaixados antes de começar o bilionário campeonato inglês, se superou. Contra equipes, verdadeiras seleções, conseguiu se impor no sistema mais difícil de competição. O torneio por pontos. Não foi como nas copas. A insanidade dos mata-matas. Foi ponto atrás de ponto.
Foram 22 vitórias, 11 empates e apenas três derrotas. 64 gols marcados e 30 sofridos. Faltando duas rodadas, Inalcançáveis 77 pontos. Ranieri anunciou ao assumir que sonhava com 40 pontos para fugir do rebaixamento. Mas que ninguém se iluda. Na riquíssima Premier League há muito dinheiro por trás do empolgante Leicester. Para montar o campeão inglês foram gastos 22 milhões de libras, cerca de R$ 113 milhões. A folha anual de pagamento dos jogadores e Comissão Técnica chega a 48,2 milhões de libras, cerca de R$ 248 milhões. Ranieri acertou por 2 milhões de euros nesta temporada, cerca de R$ 8,1 milhões por ano. Só que, por via das dúvidas, havia combinado improvável bônus pelo título. Srivaddhanaprabha aceitou bancar 5 milhões de euros, cerca de R$ 20 milhões pela conquista. O assédio aos jogadores já é grande. Barcelona, Chelsea, Manchester United querem atletas dessa surpreendente equipe. O treinador italiano já pediu ao bilionário, dono de uma gigantesca rede de free shops, para não negociar ninguém. E buscar ainda reforços para a Champions League. O tailandês jura que vai obedecer. A vitória do Leicester tem ingredientes mágicos. A superação, o comprometimento. Um clube pequeno, sofrido, fazendo tudo absolutamente certo contra os gigantes. Jogador operário e coadjuvantes encontram treinador envelhecido, humilhado. E se erguem juntos para a consagração.
Mas há o lado prático. Muito dinheiro e profissionalismo estiveram envolvidos na conquista. Desde 1978, quando o Nottingham Forest foi campeão, não acontecia tamanha surpresa na Inglaterra. O empate entre Chelsea e Tottenham confirmou o título ontem. Sentir o orgulho de Ranieri, dos jogadores, da população de Leicester emociona. Acompanhar as manchetes do mundo todo. Redescobrir que o esporte ainda é capaz de trazer felicidade.

Superar a fria e cruel lógica.

Esquecer bastidores, corrupção, falcatruas.

A alegria efêmera da conquista.

Do prazer de, entre tantos, ser o campeão.

O coração superar o cérebro.

Um dos segredos que fazem o futebol ser eterno...



Fonte: Esportes R7
Autor: cosmermoli
Publicado em: 03 May 2016 11:43:55

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